Ah!
Há uma cara de rotina que não tem outra descrição mais precisa que não essa.
Era a cara com que saía de casa todos os dias para a faculdade.
Não era aborrecida, não era contente,
Não era divertida nem sequer eloquente,
Não era alegre nem sorridente,
Nem triste ou descrente.
Nem sequer estava cansada, tinha sono de descanso.
Era a cara que devia ter quem se olhasse ao espelho às 8 horas da manhã.
No carro, sentou-se e poisou os livros no banco do passageiro.
Embreagem, mudanças, ignição, travão de mão, volante, retrovisor, embreagem e acelerador, mudanças - acelera - retrovisor, cinto, telefonia - indiferença - seguiu o seu caminho do costume.
Cantarolava agora por reflexo e repetia o que a telefonia lhe dizia como faziam em 1984:
- "Se me quisessem hipnotizar era agora o momento" - pensava e continuava repetindo o estado do trânsito para si mesmo. - "É tão estúpido relatarem isto todas as manhãs!" - continuava. - "É na 2ª Circular que está trânsito hoje?! Não!, que surpresa! Pensei que era na Rua Ribeirinha dos Canaviais... porque é que não dizem só 'Está Trânsito!' e pronto?!"
E abstraia-se no aborrecimento da sua rotina:
- "Sou uma economia a 0% - estou homologamente sempre no mesmo lugar!"
De repente olhou em frente e viu 4 mulherões (tinham pelo menos duas vezes o seu tamanho) como nunca antes vira.
Esbugalhou os olhos molhados ainda da cama e chocalhou a cara como um Rottweiler, lançando fios de baba para as suas próprias bochechas e cabelo e também para o vidro da janela e para o manípulo das mudanças. E lá estavam as mesmas mulheres, nos mesmos corpos e biquinis, cada vez maiores e mais ondulantes, mais próximas e inconcebíveis. Elas olhavam-no de forma especial, ele sabia-o. Elas queriam-no! Era óbvio - não olhou em volta para se certificar, era fiel ao seu sentimento - elas chamavam-no caladas! Formavam-lhe um corredor de hipnotizante beleza que o levava à do meio. Era exasperante vê-la assim tão perfeitamente disposta. Sentiu a comichão no coro cabeludo transferir-se para o estômago e alojar-se no pâncreas.
- "Hipnotizaram-me mesmo!".
E foi este o seu último pensamento antes de mergulhar o seu carro absorto num muro que emoldurava um outlier da Galzedónia. E esta história conto-vos eu pois só eu a sei, porque atrás dele morreram todos os outros que vieram e à frente dele todos os outros que tinham vindo menos um: eu não tive a mesma sorte! É que morrer assim é como uma criança adormecer a pensar em gelados, só que neste caso o sonho vai durar uma vida eterna!
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