Monday, June 18, 2007

When all the little ants are marching

- Viu a velocidade a que vinha?! - berrou-lhe sem saber se estava furiosa ou apenas espantada. - Partiu-me a antena toda! E teve sorte de me ter batido só de lado!
- Estas ruas são apertadas e só passa um de nós! Tenho tanta culpa como a senhora! - Disse distraído, já ajeitando-lhe a antena e diagnosticando-lhe a gravidade da ferida. - Mas se tivesse dado pela sua beleza garanto-lhe que não teria vindo tão depressa! É que sabe, tenho estas migalhas todas por entregar - não quererá a senhora uma? - e ainda...
Sacudiu-o:
- Mas o senhor 'tá parvo ou quê? Vem assim contra mim e agora atira-se também no engate?! - era furiosa que estava!
Entretanto a multidão avolumou-se em torno deles e foi-se acumulando numa espiral que roda dos dois lados e que escoa devagarinho: do lado dela abrandavam olhavam e sorriam trocismos, abanando a cabeça dizendo que sim ou que não e continuando o seu caminho pela direita vagarosos. Desconfiados do que perderiam se fossem mais depressa olhavam ainda para trás sobre os ombros negros até que esqueciam a cusquice desinteressada. O mesmo faziam os que vinham de lá, do lado dele, os que subiam e que se entupiam pela esquerda, e não viam nada senão os perdigotos furiosos dela que se escapavam pelos contornos do seu vulto.
- Mas porque não? Acho que coisas desagradáveis já nos aconteceram bastantes hoje!
- Que eu saiba só uma?
- Não lhe basta?
- Assine aqui! - cortou estendendo-lhe a declaração amigável.
- Mas se nem sequer me diz o seu nome e já quer fechar um contracto de amizade?!
- Sofia - Parada de braço estendido, não deixava que o vento lhe alisasse a face ainda irritada, embora se sentisse novamente indecisa.
Ele assinou com a sua pata negra e peluda - Jorge Marques - e acrescentou pontos e rabiscos onde a estética da rubrica mais lhe parecia pedir. Era comprido e robusto. Podia parecer uma besta mas afinal era delicado na sua brutalidade. Falava grave mas com ligeireza e era impossível não lhe olhar os olhos negros quando o fazia - era preciso entender melhor de que espírito vinha aquela sua voz que parecia tocar sempre a nota certa. Ela estava presa na curiosidade e respondia em berros desafinados como que rebelando-se contra a permeabilidade que sentia por dentro.
- E para onde ia? - perguntou-lhe no mesmo tom devolvendo-lhe a caneta e de novo ajeitando-lhe a antena.
Ela deixou, sempre fixa nos seus olhos ainda que estes se desviassem dos seus para a antena. Berrou num acorde indistinto:
- O que é que isso lhe interessa?
- Não me cheira que consiga andar de novo. E essa antena não me parece ter ficado muito bem tratada. Não lhe dói? A menos que prefira ficar onde está, à espera de quem quer que chame para que a leve daqui, eu sou o único meio de chegar aonde ia com a pressa com que se esbarrou comigo. Devo dizer que foi um choque bastante atrevido! Pergunto-me se não o fez de propósito!
- Ia para casa... - não tinha melhor resposta.
- Posso levá-la? Já somos amigos...
Estava a afogar-se na sedução.
- E as suas entregas?
- São migalhas ao seu lado... até pode comer umas pelo caminho.
- Sou pesada, vai ficar com formigueiro nas costas! - esticou a boca e ameaçou um sorriso tímido, mas parou a tempo.
Ele olhou-a de alto a baixo e completou o sorriso dela. Deu-lhe a mão e ajudou-a a subir. Ela fê-lo ligeira e docilmente passou a sua antena pela dele, roçando suavemente até ao choque macio das pontas arredondadas.
Entrelaçaram-nas a apertaram-se num aconchego mudo.
Estremeceu entregando-se ao conforto do seu torso quando ele lhe massajou a ferida que lhe fizera. Poisou a cabeça e a cara já apaziguada nas suas costas rijas e disse-lhe ao ouvido com a voz finalmente afinada de sensualidade:
- Leve-me então. Porque não começa a andar?

"ESBORRAAAACH"

O meu dedo espremeu-se no interstício de calcário amarelado entre dois azulejos do chão da minha casa de banho. Duas formigas e um resto de uma migalha fossilizaram-se no meu indicador. Não sei de que é que conversavam, mas decidiram tudo tão depressa que se tiver sido amoroso, foi amoroso como descrevi.

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