Sunday, April 22, 2007

Este escrevo-o porque me apetece

Foi numa manhã de verão dessas que queimam a alma presa debaixo da pele, que Gustavo Soares saiu à rua pela primeira vez na sua vida. Ia encontrar-se com Alice junto do bebedouro do parque infantil, que por engano jorra leite com chocolate em vez de água. Pelo caminho acomodou-se no quentinho quase líquido do reconfortante gás que se soltou na prisão das sua cuecas. Intensificou a curva feliz que sua boca encerrava e continuou construindo Alice.

Alice era especial para Gustavo. Ele sentia tanto carinho por ela como pelos pêlos que lhe saíam dos ouvidos. É que Alice não era muda! Aliás como a a maior parte das pessoas com quem Gustavo se dava, ou talvez este não seja um bom termo de comparação pois Gustava não se dava com ninguém. Mas o que nos importa é que Alice, como quase toda a gente do seu mundo, não era muda. Porém havia algo em Alice que a fazia especial por não ser muda. Não, ela não falava em tons celesteais, nem tinha um paladar doce como pétalas de rosa esvoaçantes. Alice tinha um tom de voz até bastante vulgar - nem muito agudo nem muito grave, nem limpo nem arranhado. Mas mesmo assim, e faltando hoje a Gustavo a alma queimada com que saiu à rua de manhã, não lhe faltava porém uma vontade louca de ouvir falar a sua amiga que não era muda.

Gustavo conheceu Alice no parapeito da sua janela, numa tarde de verão dessas que já pouco queimam, quando, como de costume, se debruçou para fora enquanto esfregava os dentes pela terceira vez naquele dia. Viu Alice, a pomba, e babou-se de branco esverdeado cumprimentando-a. Ela respondeu, arquejou a asa direita num gesto de sedução treinado e esvoaçou deslizando de pernas juntinhas até ao estranho bebedouro.

Gustavo decidiu sair à rua no dia seguinte.